terça-feira, 5 de agosto de 2025

O CELULAR ESQUECIDO


Não sei o que houve, mas de uns tempos pra cá o meu celular parece que se esqueceu de mim.

 

Durante muito tempo ele me chamava o dia inteiro. Tocava, vibrava, piscava. Era recado, aviso de reunião, alerta de vacina, cobrança do banco, propaganda de loja, parabéns de alguém que mal me conhecia.

 

Agora, nada.

 

Fica ali, mudo e quieto, como um gato enfastiado que já não precisa de carinho. De vez em quando acendo a tela pra ver se está vivo. Está. Só não tem nada a me dizer.

 

Nos primeiros dias, confesso, achei estranho. Seria falha no sinal? Defeito no aparelho? Alguém teria me bloqueado? Reiniciei, atualizei, troquei de tomada. Nada. Continuou em seu silêncio respeitoso.

 

Foi aí que me dei conta: o mundo já não me procura com tanta urgência. Os compromissos diminuíram, as cobranças cessaram, os convites rarearam. As pessoas se acostumaram à minha ausência — e, talvez, eu à delas.

 

Senti um vazio, mas logo passou. O silêncio virou descanso. Passei a escutar outros sons: o canto do passarinho na varanda, o vento na jabuticabeira, a chaleira do café. Nada vibrava, mas tudo me tocava.

 

Hoje, olho pro celular com um certo carinho. Ele já me deu alegrias e aborrecimentos. Agora, me dá paz.

 

Se um dia voltar a tocar sem parar, talvez eu nem atenda. Vai ver, é só o mundo querendo me lembrar de que ainda estou aqui.

 

Mas, por enquanto, que bom é ser esquecido por um celular — e lembrado pela vida.

 

Gabriel Novis Neves

31-07-2025




segunda-feira, 4 de agosto de 2025

O VIZINHO INVISÍVEL


Moramos próximos, mas quase não nos conhecemos. O que pensará o vizinho de porta que jamais cruzamos no elevador?

 

Estamos tão perto... e tão distantes!

 

Meu edifício tem um apartamento por andar.

 

O contato entre os moradores é raríssimo.

 

Alguns se encontram nas reuniões do condomínio. Outros nos elevadores.

 

Criaram até um grupo de WhatsApp para os moradores dos vinte andares do prédio, inaugurado há mais de trinta anos, se comunicarem.

 

O prédio envelheceu — e seus primeiros moradores também.

 

Mesmo assim, as trocas de mensagens são escassas.

 

As crianças cresceram, diminuíram as festinhas no salão, hoje quase sempre vazio.

 

Com a idade, tornei-me cadeirante. Sou um dos mais antigos moradores — talvez o segundo.

 

Quando uso o elevador, estou com o motorista e cuidadora. Não sobra espaço para mais ninguém.

 

Subo e desço sem cruzar com um vizinho sequer.

 

O que será que pensam de mim?

 

Alguns, dos mais novos, ainda se lembram de mim — mas não nos comunicamos.

 

Mesmo morando em um arranha-céu, estamos isolados uns dos outros.

 

Nasci em uma cidadezinha do interior do Brasil, com menos de trinta mil habitantes, há noventa anos.

 

Todos se conheciam. Não havia edifícios, apenas casas e alguns sobrados.

 

Quando a universidade federal chegou, Cuiabá tinha cem mil habitantes.

 

Com seus cinquenta e cinco anos de existência, a população sextuplicou, e a cidade se encheu de espigões residenciais.

 

O progresso chegou com velocidade,

 

transformando a velha cidade em metrópole. Mas o desenvolvimento —esse ainda o esperamos com ansiedade.

 

Lembro daquela Cuiabá onde as crianças nasciam em casa, pelas mãos das parteiras.

 

Onde todos frequentavam os mesmos lugares, desde cedo: a escola pública, o médico do Posto de Saúde na rua 13 de Junho, esquina com a Dom Bosco.  

 

Quem morava no Porto ia à igreja de São Gonçalo; os do Centro, à velha Catedral.

 

Os vizinhos eram visíveis — e sabíamos tudo uns dos outros, nessa gostosa promiscuidade social.

 

Ia-se da colher de açúcar emprestada ao vestido de gala para o casamento.

 

Quem tinha algum recurso, viajava para estudar fora de Cuiabá.

 

Alguns voltavam, casados com moças de fora. Outros ficavam por lá.

 

Crescemos é verdade. Mas perdemos a grande família que fomos.

 

Somos vizinhos invisíveis.

 

Gabriel Novis Neves

02-08-2025




domingo, 3 de agosto de 2025

PROMESSAS DE SEGUNDA-FEIRA


Escrevo em uma segunda-feira, dia do casamento dos meus pais, em 1934 —Olyntho Neves-Irene Novis —, e estou com uma série de promessas para cumprir.

 

Por que somos assim?

 

Mal a semana começa e já deixamos uma lista de afazeres para a próxima segunda-feira, sabendo, no íntimo, que não iremos cumpri-los.  

 

Adiamos nossos compromissos para a segunda seguinte — especialmente os relacionados ao tratamento dentário.

 

Não sei de quem herdamos esse hábito: dos colonizadores portugueses ou dos escravizados africanos.

 

A segunda-feira ficou conhecida como o ‘dia da preguiça’ talvez por ser o dia das promessas não realizadas.

 

O tempo custa a passar, o humor anda escasso, e todos pensam no próximo final da semana.

 

Apesar de ter sido criado sob essa ideologia, desafiei a fama da segunda-feira — e me dei muito bem.

 

Casei-me numa segunda-feira, às 18horas de um horário de verão, em 9 de dezembro de 1963, na Igreja Outeiro da Glória, no Rio de Janeiro — e fui muito feliz.

 

Meu retorno à cidade natal foi numa sexta-feira, para deixar para a segunda as tarefas que não conseguiria cumprir. Eram tantas!

 

Embora a segunda-feira tenha ares de mentirosa e preguiçosa, comigo ela sempre funcionou como dia de tarefas cumpridas.

 

Hoje é segunda, e já consegui realizar uma série de pendência da semana.

 

Talvez esse costume venha dos povos que Cabral encontrou por aqui, e que só trabalhavam o essencial — pesca, caça e agricultura rudimentar — para sobreviver.

 

Basta um pulo no Parque Nacional do Xingu para entender o que digo.

 

Não há unanimidade quanto aos dias da semana.

 

Há os alegres, os de descanso, os preguiçosos e os dedicados ao trabalho.

 

Tudo isso na teoria — pois tudo depende da nossa cultura.

 

Muitos ainda ‘sofrem para quebrar a preguiça das segundas-feiras’, e as receitas são as mais variadas.

 

Quanto a mim, vou aguardar a próxima segunda para resolver os meus problemas — de todas as ordens.

 

Gabriel Novis Neves

28-07-2025




sábado, 2 de agosto de 2025

A CADEIRA PREFERIDA


Tenho em minha casa uma cadeira de repouso que pertenceu ao avô da minha mulher.  

 

Ele, por sua vez, herdara do bisavô.

 

A peça ficava na biblioteca de sua casa, na rua Paissandu, no Rio de Janeiro.

 

Feita de madeira de lei, é pesada e ideal para o descanso.

 

Aqui em casa, tornou-se exclusividade da Regina. Quando cansada, ela jogava o corpo sobre a cadeira, estendia as mãos pelos braços do móvel, fechava os olhos —e deixava o tempo passar. 

 

Dizia ser o remédio ideal para se recuperar dos afazeres domésticos.

 

Era sua preferida para descansar e também para conversar.

 

Com seu desaparecimento prematuro, a cadeira passou a despertava curiosidade nos visitantes, que a usavam com admiração e teciam elogios.

 

Enquanto eu estava em plena atividade, mal parava na sala de visitas.

 

Minha rotina era do dormitório para o trabalho, e o retorno sempre pela entrada de serviço. Raramente via a cadeira de repouso —encanto dos que por aqui passavam.

 

Essa cadeira, predileta da minha mulher, é uma verdadeira peça de museu.

 

Aliás, minha casa abriga móveis dignos de um acervo museológico, pois Regina —filha, neta e bisneta única— herdou os objetos da família, tanto do Brasil quanto da Argentina.

 

Tenho comigo peças lindíssimas, que já não se fabricam mais, e os poucos exemplares existentes hoje estão nas mãos de colecionadores.

 

As novas gerações preferem objetos contemporâneos para decorar suas casas.

 

Daqui há pouco, essas antiguidades que guardo terão de ser divididas entre meus três filhos.

 

Gostaria de saber quem herdará a cadeira de repouso- —a preferida da Regina.

 

A gente pensa tanta bobagem... como querer saber o que acontecerá depois que partimos! Mas isso só nos interessa enquanto vivos.

 

Que aproveitemos ao máximo o tempo que nos resta, para descansar este corpo velho.

 

O mundo sempre foi assim, e cabe a nós compreendê-lo. Viemos sem nada —e assim partiremos.

 

A cadeira de repouso continuará como sempre: passando de herança em herança.

 

Gabriel Novis Neves

31-07-2025




sexta-feira, 1 de agosto de 2025

ENQUANTO O PÃO ASSA


Morei durante dez anos quase vizinho à padaria Latorraca, na rua de Baixo.

 

Nasci sentindo o aroma dos pães, o calor dos miolos e as bicadas dos pássaros; via pessoas caminhando pelas calçadas com suas sacolas de pão.

 

Descalço, de calção e camiseta, cedo eu ia comprar o pão quentinho para o café da manhã, com o dinheiro contadinho.

 

Pessoas e pássaros me faziam companhia —cada um em busca do pão da hora ou de uma bicada nos miolos.

 

Latorraca, migrante italiano, trouxe a tradição de trabalhar com massas e produzia o pão francês, mandi, canhão, doce — todos inesquecíveis.

 

À tarde, era tarefa do meu pai comprar os pães. Vinham sempre quentinhos, e o forno da padaria trabalhava o tempo todo.

 

Enquanto o pão assava, seu aroma se espalhava entre os vizinhos, convidando todos à padaria.

 

Não sei porquê os pássaros não participavam da festa à tarde.

 

Até hoje guardo na memória a enorme mesa da copa da minha casa, com dois pacotes de pão, manteiga Aviação, queijo prato, presunto e salaminho —o lanche da noite.

 

Chegando ao Rio de Janeiro, descobri que o pão da padaria do português era mais saboroso que o nosso.

 

Fui informado de que o trigo deles era melhor — mais fresco, mais próximo do consumidor.

 

Via pessoas e muitas pombas disputando os miolos jogados no chão.

 

Até hoje gosto mais do pão do Rio do que do de Cuiabá.

 

Mas o melhor pão que já saboreei foi o de Paris. Nada igual.

 

Na minha casa, não se comia pão adormecido. Ou minha mãe preparava o pudim de pão, que todos adoravam, ou distribuía os pães aos mais pobres.

 

Hoje como o pão adormecido com manteiga e queijo branco — e acho muito bom.

 

As padarias atuais viraram estabelecimentos industriais. São raras as de rua.

 

Geralmente, estão instaladas em supermercados e shoppings.

 

O aroma vindo dos fornos desapareceu, os pássaros sumiram, e as pessoas agora encomendam, sem mais ir às as padarias buscar o pão com as próprias mãos.

 

Gabriel Novis Neves 

17-07-2025






quinta-feira, 31 de julho de 2025

VENDEDORES AMBULANTES


Eram pequenos comerciantes que fazem parte das lembranças da minha infância. Sabiam de tudo sobre a vida dos moradores.

 

Vendiam pequenos objetos pelas calçadas, quando não de porta em porta. É com saudade que me lembro do tempo em que vendia jornais percorrendo as ruas da cidade.

 

Com o tempo passei a saber quem os compraria — uns para me ajudar, outros por hábito de leitura.

 

Fui vendedor ambulante das mangas colhidas no quintal da minha casa, na rua do Campo, assim como dos pastéis feitos pela minha mãe.

 

Esses vendedores tornavam-se amigos dos fregueses, chegando até a trocar confidências.

 

A cidade sentia falta e nutria simpatia por aqueles pequenos comerciantes.

 

Com o crescimento urbano aos poucos eles foram desaparecendo.

 

O vendedor ambulante caminhava sem ponto fixo — o seu comércio era o movimento.

 

Hoje ainda encontramos alguns vendedores nas calçadas em pontos fixos, geralmente oferecendo comestíveis: cachorro-quente, churrasquinho, pipoca, caldo de cana, milho assado.

 

As calçadas passaram a ser território apenas de transeuntes apressados.

 

O velho guarda na memória um passado saboroso — e que não volta mais.

 

E a saudade dói.

 

Sempre que penso na Cuiabá de outrora, sinto tristeza por aquela cidade tão boa para se viver, sem violência ou crimes.

 

Ela tinha donos: seus moradores, todos amigos entre si.


Era uma cidade acolhedora, que recebeu com carinho seus migrantes — portugueses, espanhóis, italianos, franceses, libaneses, armênios, turcos e japoneses — formando uma única família.

 

Inicialmente ocuparam todo o nosso Centro Histórico, onde montavam seus comércios e moravam nos fundos das casas.

 

Depois expandiram-se pela rua 13 de Junho até a 15 de Novembro, no Porto.

 

Tinham um cuidado especial com a educação dos filhos, não medindo esforços para que concluíssem o ensino superior.


A rede de saúde e os estabelecimentos médicos da cidade hoje estão repletos de descendentes desses migrantes.

 

Os humildes vendedores ambulantes de antigamente, muito fizeram para o desenvolvimento de Cuiabá.

 

A eles devemos boa parte da miscigenação do nosso povo e de tantas conquistas sociais.

 

Gabriel Novis Neves

24-07-2025






quarta-feira, 30 de julho de 2025

ABORRECIMENTOS


Tive alguns aborrecimentos ultimamente — não muitos. Mas como incomodaram nos primeiros dias!

 

A maioria deles veio na forma de golpes eletrônicos, que se aproveitam dos momentos de fragilidade.

 

Nada que assustasse, mas que irrita e entristece.

 

O último aconteceu enquanto eu estava em um leito de hospital.

 

Procurar a razão é inútil.

 

As quadrilhas estão tão bem organizadas que uma pequena distração pode ser fatal.

 

E como há quadrilhas em nosso país!

 

Ao puxarmos o fio da meada, quase sempre encontramos sua origem em algum órgão público.

 

Pequenas falhas podem ser a porta de entrada para o golpe.

 

Vivemos dias sob o domínio do crime, até que a poeira baixe. Mas esquecer ... é difícil.

 

Quem tem a vida organizada, mesmo diante de um pequeno abalo, sofre.

 

Felizmente, meus dissabores se resumem à perda de modestos recursos financeiros — saqueados de contas bancárias anêmicas.

 

Ninguém gosta de ser roubado, nem mesmo de pequenas quantias, fruto de um trabalho honesto.

 

Não me recordo de outros aborrecimentos, seja por perdas empresariais ou afetivas.

 

Estou em paz com o que tenho —especialmente com a saúde, o maior patrimônio que possuo.

 

O que sinto é uma profunda vulnerabilidade social. Uma impotência total.

 

Não é agradável viver em um ambiente assim. Traz desilusão e tristeza.

 

E por quanto tempo durará essa fase? Dias? Semanas? Meses?

 

A cicatriz emocional de algo conquistado e roubado permanece.

 

Por menor que seja o valor, a lembrança custa a desaparecer.

 

Lembro-me do velho ditado popular, tão sábio: ‘Se arrependimento matasse, eu já estaria morto’.

 

Escrevo para me acalmar, e não ficar com a ideia fixa no ocorrido.

 

Amanhã receberei visitas e pedirei orações para atravessar esse temporal emocional.

 

Terei de consertar aquilo que me induziu ao erro.

 

Será necessário deixar minha casa — na cadeira de rodas, e ir ao Banco.

 

Acredito que só depois disso poderei repousar em paz.

 

O mundo é assim — e até os mais atentos são, às vezes surpreendidos.

 

Gabriel Novis Neves

23-07-2025